Geral 13 de março de 2018
Ao final do ano de 2017, o Congresso Nacional concluiu a aprovação do Projeto, de autoria do Senador Antônio Anastasia, que visa a estabelecer normas gerais para a negociação coletiva na administração pública direta, nas autarquias e nas fundações públicas em todos os níveis da Federação (trata-se do Projeto que tramitou sob nº 3.831/2015 na Câmara dos Deputados, oriundo do PLS nº 397/2015, aprovado no Senado Federal).
No entanto, o projeto foi inteiramente vetado pelo Presidente da República, sob os seguintes argumentos: “A proposição legislativa incorre em inconstitucionalidade formal, por invadir competência legislativa de estados, Distrito Federal e municípios, não cabendo à União editar pretensa norma geral sobre negociação coletiva, aplicável aos demais entes federativos, em violação aos artigos 25 e 30 da Constituição, bem como por apresentar vício de iniciativa, ao versar sobre regime jurídico de servidor público, matéria de iniciativa privativa do Presidente da República, a teor do artigo 61, § 1º, II, ‘c’ da Constituição.”
Ambos os argumentos são improcedentes e o equívoco do veto, se não derrubado, manterá o Brasil como nação extremamente atrasada no que toca ao reconhecimento e regulação jurídica, no setor público, de um dos mais importantes instrumentos de consolidação da democracia e da cidadania no ambiente de trabalho.
Cabe lembrar que no Brasil, até 1988, os direitos de sindicalização e de greve eram vedados aos servidores públicos da administração direta e autárquica, como consequência de visão autoritária da relação entre servidores e poder público, que por longo tempo predominou.
No contexto da redemocratização do país, a Constituição de 1988, pioneiramente, previu que os servidores públicos têm direito de sindicalização e de greve (art. 37, VI e VII). O texto constitucional não foi explícito no que toca ao direito de negociação coletiva entre os sindicatos de servidores e a administração pública.
Em 1992, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a alínea “d” do art. 240 da Lei 8.112/1990 (estatuto dos servidores públicos federais), que previa o direito dos servidores à negociação coletiva. Essa decisão foi expedida com fundamento em visão assentada sobre pressupostos anteriores à Constituição de 1988 e que com ela não mais se coadunam, a saber: 1) a automática associação entre regime estatutário e necessária fixação unilateral de condições de trabalho pelo estado e 2) a ideia de que a negociação coletiva é algo peculiar aos trabalhadores do setor privado e que se desenvolve necessariamente sob os moldes da CLT e normas próprias do direito do trabalho.
Nos anos subsequentes, contudo, importantes fatores vieram a alterar esse panorama, apontando para a necessidade de revisão desses antigos parâmetros.
Em 2007, alterando sua orientação jurisprudencial, o STF determinou que, diante da omissão do Congresso Nacional em regulamentar a greve no setor público, passaria a matéria a ser regulada pela Lei 7.783/1989, que dispõe sobre o direito de greve no âmbito privado. Entre as normas dessa Lei, está previsto que a greve deve ser antecedida pela tentativa de negociação (art. 3º) e que a sua deflagração pressupõe a existência de instâncias de representação destinadas à busca de solução negociada para o conflito (art. 5º).
Em 2010, o Congresso Nacional aprovou a adesão do Brasil à Convenção 151 e à Recomendação 159, ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativas às relações de trabalho na administração pública. Entre outros aspectos, essas normas preveem a negociação como método apropriado para fixação de condições de trabalho. Em 2013, o Decreto 7.944 promulgou esses dois textos normativos, concluindo o processo de sua integração ao direito brasileiro.
Nesse novo contexto, a aprovação do referido Projeto de Lei, regulando a negociação coletiva, deve ser saudada como importante passo na superação de antigos modelos autoritários de gestão de pessoal no serviço público, rumo a parâmetros consentâneos à valorização da democracia e da cidadania, aspectos preconizados pela Constituição de 1988. Tanto assim é, que o Projeto aprovado teve amplo apoio de organizações sindicais de servidores públicos e dos membros do Congresso Nacional, em suas mais variadas matizes políticas. Vários projetos de lei que tramitavam há anos no Poder Legislativo foram até mesmo retirados por seus autores, em prol da ampla convergência que se formou em torno do PL 3.831.
O argumento de que não cabe à União editar norma geral sobre negociação coletiva é improcedente, pois a matéria pressupõe, sim, tratamento uniforme em âmbito nacional, no que toca aos aspectos básicos.
Como já salientado, a negociação coletiva é necessariamente ligada ao direito de greve, seja como meio de evitar a sua eclosão, seja como instrumento próprio para solucionar a paralisação e suas causas. Ademais, a greve e a negociação constituem-se em instrumentos inerentes e imprescindíveis à atuação sindical. Tal como a própria organização sindical, a greve e a negociação devem ser reguladas, pelo menos em seus aspectos essenciais, por norma nacional, pois seria absurdo imaginar que cada entidade da Federação viesse a regular tais matérias de modo inteiramente autônomo para seus respectivos servidores. Imagine-se cada Estado e cada Município com normas próprias sobre organização sindical, greve e negociação para seus servidores, sem que parâmetros básicos nacionais sejam fixados. Nesse panorama, seria tamanho o potencial de interferência de cada uma dessas entidades estatais sobre as organizações sindicais de seus respectivos servidores e sobre os seus meios de atuação, que o mínimo de autonomia e liberdade sindical poderia ser facilmente tolhido, no interesse das próprias entidades estatais enquanto patrões. Além disso, não se pode excluir que servidores de diferentes entidades sindicais realizem movimentos reivindicatórios em conjunto, em defesa de interesses comuns (lembre-se que as entidades estatais podem também atuar conjuntamente, como por meio de consórcios públicos). Se assim ocorresse, como seriam equacionadas a greve e a negociação coletiva, diante de diferentes legislações em vigor?
O STF, em diversos julgamentos, já se pronunciou pelo caráter nacional da lei de greve dos servidores públicos. Por isso, conheceu e julgou mandados de injunção propostos por sindicatos de servidores estaduais e municipais contra o Congresso Nacional, nas quais se requeria o reconhecimento da omissão desse órgão legislativo em regulamentar a greve no setor público. A aplicação da Lei 7.783/1989 à greve dos servidores públicos, como forma de suprir a omissão legislativa do Congresso Nacional, foi determinada em três processos de mandado de injunção, sendo dois propostos por sindicatos de servidores estaduais e um por sindicato de servidores municipais.1
Reitere-se que a negociação coletiva é requisito para a válida deflagração da greve (se frustrado o diálogo) e também meio legalmente previsto para encerramento da paralisação. Não há como dissociá-la da atuação sindical que busca evitar e solucionar conflitos e, por isso, também necessita tratamento em lei nacional.
Outro aspecto importante é que o Estado brasileiro, ao incorporar ao direito pátrio a Convenção 151 e a Recomendação 159, da OIT, comprometeu-se junto à comunidade internacional a regulamentar internamente, entre outros aspectos, a negociação coletiva. Não faz sentido que o cumprimento desse compromisso fique na dependência da atuação dos vários Estados-membros e dos milhares de municípios.
Devendo a matéria ser tratada em norma de caráter nacional, consequentemente não procede o argumento de que haveria iniciativa privativa do Presidente da República para apresentar projeto de lei sobre negociação coletiva de servidores públicos. A iniciativa privativa a que se refere o 61, § 1º, II, ‘c’ da Constituição de 1988, somente se refere àquilo que é específico aos “servidores da União e Territórios”, como expressamente diz o referido dispositivo constitucional.
Diante, pois, da equivocada postura do Poder Executivo, cabe ao Congresso Nacional derrubar o veto, para repor o amplo e exemplar consenso ao qual se conseguiu chegar no Poder Legislativo, democraticamente e sem qualquer ofensa à Constituição.
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Fonte: Jota